quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Pelo que vivo

Sou um homem de causas. Vivi sempre pregando, lutando, como um cruzado, pelas causas que comovem. Elas são muitas, demais: a salvação dos índios, a escolarização das crianças, a reforma agrária, o socialismo em liberdade, a universidade necessária. Na verdade, somei mais fracassos que vitórias em minhas lutas, mas isso não importa. Horrível seria ter ficado ao lado dos que venceram nessas batalhas.
Darcy Ribeiro (1922 - 1997)


Descrição da foto: imigrantes, homens e mulheres, magros e maltrapilhos, descansam, exaustos, numa praia das Ilhas Canárias, na Espanha. São imigrantes vindos de várias partes.
Crédito: Agência France Press

terça-feira, 14 de outubro de 2008

As provocações de Abujamra


De repente, eu estava lá, sentada diante de um dos maiores ícones do teatro brasileiro: Antonio Abujamra. A entrevista estava prestes a começar, sem ensaio, sem nenhum preparativo. Apenas uma rápida maquiagem, um cafezinho, copo d´água (a boca estava seca...), a entrada apressada para dentro do estúdio e eis que ouço a voz retumbante me chamando: “Katia Fonseca!”.
Fui chegando devagar, em minha cadeira de rodas, e senti o olhar daquele homenzarrão a me espiar de soslaio, por cima dos velhos óculos de sábio. Sim, acho-o com cara de sábio. Daqueles que se disfarçam em comentários banais para proferir grandes verdades.
Convenceram-me a sentar na poltrona reservada aos entrevistados, o que fiz de bom grado, com a ajuda dos contra-regras. “Tragam umas almofadas”, pediu Antonio, O Grande! Ajeita daqui, ajeita dali, pronto, eu estava pronta, sob os olhares cuidadosos e protetores daquele que, dali a alguns instantes, seria o meu algoz.
Pronta? Quem disse que eu estava pronta? Eu achava que estava? Tinha uma segurança que se revelou tão firme quanto uma gelatina.
Já na primeira pergunta, respondi depressa, mas titubeei por dentro: “Acho que estou muito pedante”, pensei. A seguir, aquele gigante à minha frente ia despejando suas provocações como uma enxurrada, com ironia fina e olhos de lince. Um olhar sarcástico, mas resplandecente em generosidade. Unida à sua altivez de mestre das artes (sobretudo a declamatória), uma profunda ternura.
Fiquei, muitas vezes, sem fala. Catatônica, perplexa. Com medo de dizer besteira, não dizia nada. Babei! Literalmente, babei!! Eu tinha me preparado para o final, aquela hora em que ele manda olhar pra câmera e dizer o se que quer. Ensaiei por dias. Mas, de resto, negligenciei o poder de absorção do meu entrevistador e acreditava que seria fácil ter uma boa performance diante dele. Afinal, estou habituada aos palcos e a falar diante do público... Antonio Abujamra, o deus-palavra, é muito mais impactante do que qualquer platéia. E eu fiquei ali, estatelada, sem palavras diante daquele mágico dos sons falados.
Quanto tempo passei ali? Quinze ou vinte minutos, no máximo. Ao me despedir, beijei sua mão, certa de que aquela experiência tinha sido do mesmo tamanho de uma vida inteira de aprendiz da arte maior da humanidade: o teatro.
Estava ali, diante de mim, um dos mais puros espíritos dionisíacos dessa arte, que torce e retorce os nós dos seres humanos, no que temos de mais profano e mais sagrado, revelando, desnudando nossa essência.
E, de novo, encontrei-me diante de mim mesma, diante daquilo a que vim a ser com minha existência: cantar uma epopéia canalha, mostrando cruamente suas úlceras.
Termino com o texto de Lautrec, peça teatral que nasceu das minhas entranhas, momento tão intenso e genuíno quanto esse encontro instantâneo com Antonio Abujamra, ou, simplesmente, Abu: “Mas eu estava em busca da verdade! Nunca a pobre libertinagem, a estupidez passiva e a inconsciência animal tinham sido mostradas com tanta clareza, com uma tranqüilidade tão rude. Mas o que importa a eternidade da danação a quem encontrou, num segundo, a infinitude do gozo?!”

ET - A entrevista vai ao ar no dia 31/10. Mas pode deixar que, antes disso, vou fazer muito barulho!

Descrição da foto: O rosto de Antonio Abujamra em close. Um senhor calvo, óculos na ponta do nariz, olhar sarcástico e um meio-sorriso desdenhoso.