terça-feira, 14 de outubro de 2008

As provocações de Abujamra


De repente, eu estava lá, sentada diante de um dos maiores ícones do teatro brasileiro: Antonio Abujamra. A entrevista estava prestes a começar, sem ensaio, sem nenhum preparativo. Apenas uma rápida maquiagem, um cafezinho, copo d´água (a boca estava seca...), a entrada apressada para dentro do estúdio e eis que ouço a voz retumbante me chamando: “Katia Fonseca!”.
Fui chegando devagar, em minha cadeira de rodas, e senti o olhar daquele homenzarrão a me espiar de soslaio, por cima dos velhos óculos de sábio. Sim, acho-o com cara de sábio. Daqueles que se disfarçam em comentários banais para proferir grandes verdades.
Convenceram-me a sentar na poltrona reservada aos entrevistados, o que fiz de bom grado, com a ajuda dos contra-regras. “Tragam umas almofadas”, pediu Antonio, O Grande! Ajeita daqui, ajeita dali, pronto, eu estava pronta, sob os olhares cuidadosos e protetores daquele que, dali a alguns instantes, seria o meu algoz.
Pronta? Quem disse que eu estava pronta? Eu achava que estava? Tinha uma segurança que se revelou tão firme quanto uma gelatina.
Já na primeira pergunta, respondi depressa, mas titubeei por dentro: “Acho que estou muito pedante”, pensei. A seguir, aquele gigante à minha frente ia despejando suas provocações como uma enxurrada, com ironia fina e olhos de lince. Um olhar sarcástico, mas resplandecente em generosidade. Unida à sua altivez de mestre das artes (sobretudo a declamatória), uma profunda ternura.
Fiquei, muitas vezes, sem fala. Catatônica, perplexa. Com medo de dizer besteira, não dizia nada. Babei! Literalmente, babei!! Eu tinha me preparado para o final, aquela hora em que ele manda olhar pra câmera e dizer o se que quer. Ensaiei por dias. Mas, de resto, negligenciei o poder de absorção do meu entrevistador e acreditava que seria fácil ter uma boa performance diante dele. Afinal, estou habituada aos palcos e a falar diante do público... Antonio Abujamra, o deus-palavra, é muito mais impactante do que qualquer platéia. E eu fiquei ali, estatelada, sem palavras diante daquele mágico dos sons falados.
Quanto tempo passei ali? Quinze ou vinte minutos, no máximo. Ao me despedir, beijei sua mão, certa de que aquela experiência tinha sido do mesmo tamanho de uma vida inteira de aprendiz da arte maior da humanidade: o teatro.
Estava ali, diante de mim, um dos mais puros espíritos dionisíacos dessa arte, que torce e retorce os nós dos seres humanos, no que temos de mais profano e mais sagrado, revelando, desnudando nossa essência.
E, de novo, encontrei-me diante de mim mesma, diante daquilo a que vim a ser com minha existência: cantar uma epopéia canalha, mostrando cruamente suas úlceras.
Termino com o texto de Lautrec, peça teatral que nasceu das minhas entranhas, momento tão intenso e genuíno quanto esse encontro instantâneo com Antonio Abujamra, ou, simplesmente, Abu: “Mas eu estava em busca da verdade! Nunca a pobre libertinagem, a estupidez passiva e a inconsciência animal tinham sido mostradas com tanta clareza, com uma tranqüilidade tão rude. Mas o que importa a eternidade da danação a quem encontrou, num segundo, a infinitude do gozo?!”

ET - A entrevista vai ao ar no dia 31/10. Mas pode deixar que, antes disso, vou fazer muito barulho!

Descrição da foto: O rosto de Antonio Abujamra em close. Um senhor calvo, óculos na ponta do nariz, olhar sarcástico e um meio-sorriso desdenhoso.

10 comentários:

Marta disse...

Kátia,

Sua sensibilidade, sua facilidade prá captar e expressar são incríveis!!

Parabéns! Eu até me ajeitei em minha cadeira :-))

um beijo,
Marta Gil

Anônimo disse...

Que belo texto antes do fato da entrevista, do entrevistador e do Lautrec! Avise sim, pois não quero perder por nada a entrevista!!

Anônimo disse...

EMOCIONANTE!!!!!

Anônimo disse...

Kátia. Eu tenho certeza de que você soube receber como ninguém as provocações do Abujamra. Estamos todos ansiosos para ver o programa. Parabéns.

claudiaf disse...

Vai escrever/descrever bem assim na..., estou sem palavras, mesmo correndo o risco de ser redundante, você é uma maga com as palavras. Parabéns pela entrevista!
P.S. - eu demoro prá ler, mas aproveito bem. Beijos Claudia

Anônimo disse...

Gostei muito do que você escreveu sobre o Abujamra. Mais ainda porque, nunca época da minha vida, anos sessenta, comecinho, convivi algumas vezes com ele. Pois namorei, na época, com uma atriz que era do seu grupo. Naqueles
idos ele ainda não era o "monstro sagrado" de hoje. Mas a inteligência, luminosa, já chispava. Foi muito bom o que você
escreveu. Um beijo

Do Antonio Contente

Anônimo disse...

Kátia, querida:

Seu texto é de uma sensibilidade a flor da pele, nos transporta e dá a impressão de estarmos acompanhando de perto(quase por dentro) o que se passou naquele encontro. Emocionante!
Obrigada pelo privilégio de ter sido testemunha, também literal, daqueles momentos mágicos...

beijão,

Rudinei Borges disse...

Kátia, os teus escritos alcançam uma ternura abrupta. A descrição da entrevista com Abujamra é sagaz e contundente. Quando li a tua voz vi o meu retrato embassado, a minha própria entrega e dor, também a minha própria alegria. Lautrec! Lautrec? O teu poço é cheio de água límpida. Bom vê-la.

rudinei_borges@yahoo.com.br

Anônimo disse...

Excelente texto, Katia!

Kátia Ferraz Ferreira disse...

Nada como ter uma jornalista competente e com tanta lucidez nas colocações. Falo de novo! Adorei Xará
Beijos

Kátia Ferraz